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Sonetos (ou não)
 
 
O Cara Da Parada

A espera na parada de ônibus é um tempo que se perde todo o dia. E ultimamente minha espera tem sido não só entediante mas também cheia de angústia. Tudo culpa do cara da parada.
O cara da parada é um sujeito que espera o ônibus, como eu, na mesma rua que eu e no mesmo horário que eu (ai de ti, destino, se eu te encontro por aí...), porém no lado oposto, na outra calçada. Ele é uma figura difícil de descrever de tão comum. Parece se mimetizar com a paisagem, não tem expressão nenhuma, não tem movimento, não tem alegria, não tem nada. Antecipo a pergunta óbvia, que inclusive eu mesmo já fiz: mas então, por que ele me chama tanto a atenção?
Eu sou o tipo de pessoa que sente culpa por desperdiçar tempo. É como aquele e-mail que circulou há um tempo atrás, que dizia que o dia tem milhares de segundos que são depositados todo o dia na tua conta corrente, e no fim do dia desaparecem se não forem gastos. Tudo bem que outros e-mails diziam que eu teria dez anos de azar no amor e um piano cairia na minha cabeça se eu não repassasse a mensagem para vinte pessoas, mas aquele era diferente. Desde então não descanso mais: até na parada de ônibus tento pensar coisas úteis enquanto espero. Mas o homem lá do outro lado não. Ele é certamente o campeão mundial de tédio, o recordista da monotonia. Um amontoado de células sustentado por um esqueleto inerte, olhos focando o ponto mais longe na rua esperando o comando "ônibus chegou" para rodar o programa "chame o ônibus": um verdadeiro robô.
Como pode ele não pensar em mais nada? Olhar um carro que passa, um passarinho que canta, as flores lilás de jacarandá em volta dos pés dele... Será que ele não pensa no que espera por ele no trabalho? Ou quem vai encontrar no ônibus? Será que não o preocupa a guerra no outro lado do mundo, se existem ou não alienígenas, se o aborto deveria ser permitido? Os milhares de litros d'água que passam por baixo dele, os milhares de volts que passam por cima, as gurias que passam de bicicleta pelo lado, os pensamentos que deveriam passar por dentro do seu cérebro, mas que pelo jeito não o fazem.
Num desses dias de chuva, notei que havia uma goteira na parada dele, e lhe caíam gotas no ombro. Ele não saiu do lugar. Meu Deus! Será que nada é motivo para acordar esse cidadão? Juro que cheguei a balançar o corpo pra frente para dar o primeiro passo para atravessar a rua, no meio da chuva, meter o dedo no nariz dele e dizer: "Te mexe, criatura! É o mínimo do ser humano!". Mas meu ônibus chegou bem na hora.
Ontem foi outro desses dias em que o relógio parece andar para trás enquanto eu espero e o observo. Tudo dentro da rotina: chego na parada, olho para ele, me irrito, espero, ônibus chega, entro, sento no banco da janela. Mas ontem não foi como nos outros dias. A garagem de um prédio se abre e um carro vai saindo dela, a poucos metros do cara da parada. O que eu vi depois, através do vidro, enquanto meu ônibus partia lentamente, me deixou de boca aberta. E não uso figura de linguagem: meu queixo desceu e assim ficou, meus olhos arregalados, meu coração não sabia se disparava ou se parava. O homem avançou como um animal selvagem para cima do carro, ira e determinação nos olhos. Num golpe de extrema destreza, chutou o vidro do motorista quebrando-o em mil pedaços, sacou uma pistola que escondia embaixo da roupa e apontou para o indivíduo que dirigia, enquanto gritava muito e com a outra mão puxava-o pela gola da camisa.
Não consegui trabalhar, não consegui pensar em mais nada que não fosse imaginar o desfecho daquela cena depois que meu ônibus partiu e eu os perdi de vista. Acho que nem desci na parada certa, só o que fiz foi ficar pálido, repensando todos os meus conceitos.
O jornal que tenho agora em mãos traz na manchete da capa a notícia que esclarece o ocorrido que tornou confuso qualquer pensamento meu. As coisas podem não ser o que parecem, e podem inclusive me surpreender demais, sendo tão diferentes do que eu imaginava que pode não valer mais a pena pensar nelas. Não sei mais nada.
"Detetive captura criminoso depois de meses de vigilância".



 
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